top of page

As Horas

Andrea Gadelha

 

O antigo relógio pendurado na cozinha lhe mostrava que tinha o tempo necessário. Ela escolheu o feijão preto atenciosamente e picou o tempero bem miúdo, com a faca mais afiada. Precisava que a refeição fosse especial. Olhava repetidamente a  carne que já assava no forno, para que não passasse do ponto exato que ele gostava. O arroz terminou o cozimento quando a panela de pressão alardeou a conclusão da feijoada.

 

 

Banhou-se. Secou-se. Perfumou-se. Amarrou os cabelos negros com um broche cor de pérola e vestiu obedientemente a roupa de cetim que ele lhe deixou sobre a cama naquela manhã. Deixou o telefone tocar, sabendo que qualquer distração roubaria segundos relevantes.

 

 

Separou os pratos e checou se os talheres estavam bem limpos, não queria que ele encontrasse vestígios de gordura. Tirou os copos do armário e preparou a mesa com disposição dos objetos quase obsessiva. Percebeu a tempo o vinco na toalha que demonstrava que a peça não havia sido passada corretamente. Precisava de tudo perfeito. Pôs o ferro para aquecer enquanto desfazia a mesa e tirava a toalha. Deixou o vapor agir sobre o tecido até vê-lo liso. E arrumou a mesa novamente com a mesma meticulosidade.

 

 

O antigo relógio pendurado na cozinha lhe mostrava que ele estava para chegar. A cerveja estava gelada. Ela correu ao quarto para marcar as bochechas com um ruge delicado. Nada berrante. Mulheres direitas não usam cores berrantes.

 

 

Quando a porta se abriu, o cheiro lhe chegou antes ao nariz que o marido à retina. Ela já estava sentada na cadeira de sempre, aguardando que o bêbado conseguisse achar a sua. Alisou a barra da saia para aparentar tranquilidade, um gesto displicente. O aroma que o feijão espalhava pelo ambiente lhe abria o apetite, mas comeria apenas do arroz.

 

 

Ele farejou a comida enquanto tomava assento e evitou olhar a mulher que estava a seu lado. Escrutinou os talheres e pratos procurando qualquer vestígio de imundície. Abriu a lata que ela deixou na mesa e serviu um copo de cerveja para si. Então foi que recostou-se na cadeira para observar a companheira. A roupa que lhe deixara. O cabelo amarrado. A maquiagem que não escondia nem contrastava com o hematoma escuro em seu rosto. Tolerável.

 

 

Vertendo goles largos, aguardava que ela lhe pusesse o prato e admirava com orgulho a mancha roxa que tinha feito há uns dias no braço da esposa. Era uma que já desaparecia, diferente da que tinha na perna, que ele gostava de comprimir à noite para vê-la sentir mais dor. Com o prato preparado, autorizou que ela se servisse. E nesse momento percebeu, mas deixou passar, um sorriso débil no rosto da mulher. 

 

 

Quando ele terminou a refeição e abriu mais uma lata da cerveja, ela identificou que os movimentos dele já não eram precisos e quando ele falou, que a voz já era pastosa. “Pro quarto!”, ordenou. Ela acatou, caminhando com passos firmes. Quando ouviu a queda, virou-se para que o envenenado a olhasse pela última vez.

O antigo relógio pendurado na cozinha lhe mostrava as horas.

bottom of page